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imagens da vida e da arte

sábado, 19 de novembro de 2011

Milton Santos: presente e presença no mapa da consciência negra.

 
Semana que antecede o dia 20 de novembro, consciência negra ostentada em diversos formatos da mídia. Circulando no cenário cultural brasileiro há mais de uma década a expressão já faz parte do vocabulário, porém o seu significado ainda é uma expressão tímida em grande parte dos brasileiros. Falando sobre isso no Jornal Extra deste domingo da Consciência Negra, o músico Seu Jorge questiona: "talvez o negro tenha orgulho de sua raça, mas o restante das pessoas  não está nem aí para isso(...) Esse é um espaço que temos que conquistar. Temos que preparar nossos filhos parta também correr atrás disso"
No ano em que a data é oficializada no calendário nacional, faço duo com Seu Jorge e repenso passos dados na conquista deste epaço. 

A palavra espaço tem tudo a ver com Milton Santos, personagem de um episódio que vivi em 1999 e que reflete a (in) visibilidade de personalidades negras para grande parte da população brasileira que (como eu à época) conhece mais a vertente cultural colada à expressão consciência negra, desconhecendo tantos homens e mulheres afrodescentens que afirmam uma identidade negra diferente da subalternidade. Considero o acontecimento emblemático para demonstrar como a maioria dos afrodescendentes, sem o privilégio da informação, aceita o espaço para eles determinado. Vejo também como um dos acontecimentos que propiciaram meu despertar para a necessidade de retomar vínculos com a matriz negro-africana, latentes na vivência de afro-brasileira nascida no São Carlos; e silenciados no decorrer da educação formal, que me apontava a assunção dos valores branco-europeus como caminho para uma inclusão social.

Vamos à festa e ao fato. Evento comemorativo da Consciência Negra, o Ile Ifé, realizado na UERJ em 1999 me colocou diante Milton Santos. Todos no maior afã diante da personalidade. Eu, aceita e incluída na sociedade após ser empossada funcionária da universidade, nada sabia sobre aquele doutor de aparência tão diferente da maioria dos que ostentam o título, e tão semelhante a minha. Privilegiados por uma informação sonegada em minha formação de nível médio, alunos e professores universitários correram para uma foto histórica e me fizeram fotógrafa desta relíquia.

Foi preciso muito tempo para que eu compreendesse o presente daquela presença. Hoje, olhando a fato, lamento que minha imagem não esteja naquele registro que é, também, marco do início do movimento de tornar-me afrodescendente consciente da memória e história afro-brasileira. O tempo implicado nesse processo foi marcado por encontros com a obra de Santos. No pensamento deste professor, que declara ter optado pela geografia em função do fascínio pelo movimento, encontro suporte para movimentar existência e ampliar minha consciência acerca da importância de suas teorias e do significado de sua trajetória afrodescendente para a memória brasileira e identidade dos afro-brasileiros.

Viajante, como indicado para um pesquisador aficcionado pelo movimento, Santos atravessou fronteiras. No auge da ditadura, em 1964, foi professor convidado nas Universidades de Toulouse, Bordeaux, Paris-Sorbonne e IEDES. Nos anos seguintes, MIT (Boston), Toronto (Canadá), Caracas (Venezuela), Dar-es-Salam (Tanzânia) e Columbia (New York). O trânsito por tantos territórios permitiu apurar considerações sobre a geografia humana e as questões que incidem sobre a mesma em diferentes espaços. Toda essa experiência resultou em textos críticos, manifestos e livros que, em sua maioria promoveram uma revisão de conceitos e uma articulação entre a geografia e reflexões pertinentes em outras áreas, como acontece em Por uma Geografia Nova, da crítica da geografia a uma geografia crítica (1978), Técnica, espaço, tempo: globalização e meio técnico-científico informacional (1994), Por uma Geografia Nova, Da totalidade ao lugar (1996), Metamorfose do espaço habitado (1997) e A Natureza do Espaço (1996).

Interdisciplinar, leitor crítico da globalização e do mundo presente, Santos produziu reflexões que atuam como munição ativa na luta por afirmação e reconhecimento da matriz negro-africana nas horizontalidades e verticalidades em que se divide espaço. Apontando o lugar como o espaço do acontecer solidário gerado na cultura, antropologia, economia e outros setores da vida social, Milton Santos indica uma geografia humana, solidária e necessária em todo lugar para parir uma outra globalização. Encarando o futuro, Santos analisa as ações que podem romper um atual “globalitarismo”, e que integram um “período popular da história”, identificado pelo autor como aquele em que predominam as formas de resistência locais às perversidades estabelecidas pelo mundo neoliberal e difundidas por um modelo de alienante de globalização.

O legado de Santos é um extenso rol de conceitos e reflexões que permitem ampliar o conhecimento sistemático das realidades locais, minimizar a alienação e proporcionar focos de resistência na sociedade civil. Visionário, o autor destacou o papel das tecnologias da informação como instrumentos responsáveis pelo empoderamento do homem popular que, com o acesso a tantos recursos, faz-se capaz de driblar o monopólio da informação e injetar novos ares e discursos no “território transnacional”.

Além dessa visão global, o pensamento gerado pelo teórico ajuda a (re)ver a sociedade brasileira de dentro e vislumbrar nela margem destinada ao negro e herdada pelo afrodescendente. Entender essa dinâmica é fundamental para criar formas de resistência aos discursos alienantes e  pejorativos que rondam as relações étnico-raciais brasileiras.

Ao descortinar esse horizonte de possibilidades reflexivas Milton Santos nos encoraja a reforçar a memória afro-brasileira na horizontalidade – entendida por ele como aquela constituída de lugares unidos por uma continuidade territorial, para que desse modo sejam fortalecidas as informações que auxiliam na construção de uma solidariedade travada entre diferentes áreas do saber e promotora de políticas de ações afirmativas e identitárias destinadas a minimizar desigualdades sociais ligadas à pertença étnica de alguns brasileiros.

Com ciência Milton Santos mostrou a “técnica como plataforma para a liberdade”. Recorro a esta plataforma para lançar minhas palavras em homenagem a este professor que levava os Santos nome, mas tinha fé apenas numa produção solidária de saber  presente em suas obras e em seus depoimentos,alguns registrados e disponibilizados em espaços como  a página http://miltonsantos.com.br/site/. Nesses espaços em que a técnica registra a memória,  o  conhecimento produzido por Milton Santos circula livre e se faz acessível às mentes apaixonadas por um movimento de expansão do saber semelhante ao demonstrado por este mais velho muito vivo entre nós em função de sua trajetória tão admirável.















Um comentário:

  1. Muito belo o texto. Mesmo não sendo um afrodescendente, pelo menos que a pele faça imediata referência a esta origem, ao deparar-me pela primeira vez com a figura do Prof Milton Santos no Programa Roda Viva, no centro das atenções, como um dos mais prestigiados cientistas do mundo, tive também o bom espanto, é tão pouco divulgada a presença do negro na ciência, muito mais é nos esportes e nas artes, mas, apesar de muitos exemplos na nossa própria história (Todo conhecimento da metalurgia que adquirimos com os primeiros negros que aqui chegaram, os engenheiros irmãos Rebouças, Sebastião José de Oliveira e tantos outros..., assim como a ciência tão pouco apoiada e por conseguinte divulgada, lembro do emblemático fato do Cientista Cesar Lattes, que foi barrado na alfândega brasileira com o prêmio cientifico mais importante do mundo, enfim, cientistas esquecidos, negros esquecidos uma triste fórmula, parabéns pela bela matéria.

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