KIAFUNHATA

imagens da vida e da arte

terça-feira, 17 de maio de 2011

Conceição Evaristo: escrevivências de uma doutora afrobrasileira.

Fêmea.
Fênix.
Eu fecundo.
Conceição Evaristo








Os deuses da chuva irrigaram o último treze de maio, quando Conceição Evaristo se fez doutora. Como a camélia dos abolicionistas, Evaristo brotou como símbolo de resistência em uma tarde que fez dela representante das vitórias alcançadas por afrodescendentes brasileiros nos séculos posteriores à abolição, nos quais persiste a baixa escolaridade, o baixo poder aquisitivo e a baixa estima que acorrentam o afro-brasileiro ao lugar subalterno determinado para seu ancestral escravo. O grito poético- político contra este movimento de continuidade é constante na obra da autora e ecoa em Vozes Mulheres, poema inserido na primeira publicação coletiva e, tempos depois, inserido em Poemas de recordação e outros movimentos, publicado em 2008

A minha voz ainda
ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
e
fome

Poeta, romancista e ensaísta, Conceição Evaristo iniciou sua trajetória literária em 1990, nos Cadernos Negros. A partir desta época, a professora abraça a poesia, transformando-a em parte da militância em prol da afirmação de uma identidade afrobrasileira trabalhada na escrita literária e produção acadêmica elaborada nas décadas posteriores.

Ao refletir sobre seu processo de criação, Evaristo, então mestre em literatura brasileira, teoriza e define sua escrita como resultante da “escrevivência”. O termo traduz um fazer literário diretamente comprometido com a existência de uma autora que recorre ao texto poético e ficcional para ressaltar as marcas da exclusão que pesam na trajetória de afrobrasileiras e afrobrasileiros postos na escala inferior da hierarquia vigente nas relações étinicoraciais. Espaço reservado para a classe mais baixa, as favelas, as ruas, os ônibus servem de cenário para narrativas que refletem o cotidiano comum à maior parte dos afrobrasileiros, no qual sobram “Pedra, pau, espinho e grade”, elementos convertidos em material poético caracterizado por testemunhar injustiças de todos os tempos e convocar a esperança que alimenta a coragem necessária para mudar

“No meio do caminho tinha uma pedra”,
mas a ousada esperança
de quem marcha cordilheiras
triturando todas as pedras
da primeira à derradeira
de quem banha a vida toda
no ungüento da coragem
e da luta cotidiana
faz do sumo beberagem
topa a pedra-pesadelo
é ali que faz parada
para o salto e não o recuo
não estanca os seus sonhos
lá no fundo da memória,
pedra, pau, espinho e grade
são da vida desafio.

Para tornar sua autoria assumidamente negra, Evaristo recorre à matriz africana retirando desta os referencias que serviram de base para uma postura afrocentrada. Deste modo sua produção literária ajuda a semear reflexões sobre a vivência negra e os desdobramentos da questão racial na vida do afrobrasileiro. Consciente e consciencializadora, Evaristo faz a palavra desencadear denúncias veiculadas em imagens que trituram a pedra da harmonia, sobre a qual a sociedade brasileira edificou seu discurso de cordialidade. Entalhada em verso e prosa, a linguagem dura constrói metáforas feitas para destruir o olhar naturalizado do brasileiro para relações étnicoracias marcadas pelo preconceito. A esse processo corresponde a “palavração” referida na tese, ainda inédita. Tal processo de criação permite a composição de tipos e formulação de temas que trabalham o reconhecimento e respeito à diferença enaltecida na imagem dos homens, mulheres e meninas “revestidos de pele étnica” e estampados no tecido textual de poemas como “Meu corpo igual”(2008):

Na escuridão da noite
meu corpo igual,
bóia lágrimas, oceânico,
crivando buscas
cravando sonhos
aquilombando esperanças
na escuridão da noite

Parida a partir da memória individual e coletiva, a textualidade de Evaristo alcança aquela ancestralidade caracterizada pela continuidade do legado dos antepassados. E se quisermos pensar na questão de gênero, o legado das lutas femininas transparece na teia poética em que o eu lírico evoca ancestrais africanos, ou destaca as mais velhas representadas por amigas, tias e mãe, cujos saberes transmitidos ajudaram a revestir de brandura e poesia “a violência dos ditos” que veiculam a experiência dura de ser e se assumir como mulher e afrobrasileira em uma sociedade que naturalizou o discurso falocêntrico e práticas racistas.

Protagonista negra no universo majoritariamente branco da ficção brasileira, Ponciá Vicêncio é uma descendente de escravos africanos. Personagem que intitula o romance publicado por Evaristo em 2003/206, Ponciá faz transbordar na ficção literária brasileira do século XXI a reflexão em torno da experiência da desterritorialização, vivida pelo negro africano durante a formação da diáspora e repetida nos espaços diaspóricos nos quais se observam perdas materiais e culturais, em função das quais, o ser negro se afasta das raízes avivadas nesta trama ficcional.

Em sua tese de doutoramento, Evaristo aborda o compartilhar dessas raízes africanas no plano temático da poesia do angolano Agostinho Neto e dos brasileiros Ney Lopes e Edmilson de Almeida. Intitulada Poemas malungos: cânticos irmãos a tese, aprovada e indicada para publicação, em breve deve se tornar mais um livro na bibliografia de Conceição Evaristo, titulada doutora no Ano Internacional dos Afrodescentes e no mês de maio marcado em seu rosário de contas negras e mágicas pelas “coroações da Senhora, em que as meninas negras, /apesar do desejo de coroar a Rainha,/tinham de se contentar em ficar ao pé do altar/lançando flores” (2008, p. 16).

Ao cabo de tantos livros e lutas, nesse maio da primeira década do século XXI, Conceição Evaristo conquista um título que coroa a luta travada por mulheres afrobrasileiras que não se contentam com a posição periférica. A defesa de Evaristo é um ataque à subalternização dos afrobrasileiros e aos preconceitos que pesam sobre a mulher. Senhora de suas palavras, Evaristo articula mensagens reprimidas por estas meninas/mulheres silenciadas ao longo do tempo. Fêmea, fênix, a doutora fecunda o movimento de inserção dos afrodescendentes no universo acadêmico e intelectual brasileiro.

Inspirada pelos cânticos irmãos, tomo do malungo Ondjaki um empréstimo, para dizer: oxalá cresçam camélias semeadas pelo cântico dessa professora e mais velha, de voz mansa e mensagem densa.

2 comentários:

  1. Irmã, que texto lindo! Uma homenagem, um testemunho, uma escrevivência sua e dela (a mais velha Conceição). Muito tocante. Fez-me lembrar as emoções todas daquele 13 de maio. Escreviventes somos, porque só assim somos mulheres e afros neste mundo.
    Axé para você e para a nossa Conceição, porque escritora é sempre assim de todas nós.
    Forte abraço

    ResponderExcluir
  2. Conheci Conceição Evaristo nos anos de faculdade. Por muito tempo acompanhei a sua luta pela afirmação da identidade e da cultura negras. Hoje, 30 anos depois, tenho a felicidade de atestar que a luta (sempre contínua) frutificou! O belíssimo texto de Simone vem registrar com ternura, emoção e muita garra esta trajetória cheia de percalços que Evaristo atravessou, e que, a duríssimas penas, alcança, agora, o seu objetivo maior. Parabéns a vocês pelo cuidadíssimo empenho em reafirmar, sempre, as raízes negras. E que brotem cada vez mais as "escrevivências"!

    ResponderExcluir